Presente Cinza, Passado em Cores – V (final)
Presente Cinza, Passado em Cores – V (final)

Presente Cinza, Passado em Cores – V (final)

AVISO IMPORTANTE

Esta é uma continuação. Caso ainda não tenha lido a primeira parte, comece POR AQUI.

Folhetim – Presente Cinza, passado em cores – Capítulo 5

Nos dias que se seguiram à sua experiência no Porto das Almas, Mayara sentia-se um tanto diferente. Não era medo, nem alívio. Era como se algo tivesse sido despertado dentro dela — um olhar que antes não existia. Quanto às fotos que apareceram misteriosamente na minicâmera, elas sumiram da mesma forma que vieram: sem qualquer explicação. Mesmo tentando recuperá-las, não havia vestígios delas no aparelho. Nenhum arquivo corrompido, nenhuma pasta oculta. Era como se nunca tivessem estado ali.

Mas Mayara sabia a verdade: elas estiveram lá, sim, e mais: tinham mostrado a ela algo que ela insistia em não ver, levada pelas circunstâncias de sua jovem, mas já tão penosa vida. De certa forma, aquele contato sobrenatural com o passado havia despertado em Mayara uma visão mais apurada de si e de tudo que acontecia ao seu redor.

Nos primeiros dias após o fatídico encontro com a mulher do vestido de chita, Mayara tentou seguir sua vida normalmente, mas algo dentro dela não permitia. Pulsava dentro dela uma descoberta das cores da vida, das quais já havia se esquecido. Notou, como através de uma lente cristalina, o quanto até então caminhava pelas ruas sem reparar nas cores, nas formas, na luz filtrada entre as árvores. Era como se estivesse reaprendendo a enxergar.

A minicâmera tinha também surgido de lugar algum, e agora não saía mais de perto da moça. Mayara entendeu que aquele poderia ser o seu portal para outras experiências transformadoras. Começou a tirar fotos, despretensiosamente e sem qualquer preparo, registrando os pequenos detalhes dos quais nunca havia se dado conta antes: o reflexo da Igreja Matriz nas poças depois da chuva, folhas amareladas criando um tapete sobre o chão outonal, o olhar perdido de um senhor que avistava suas melhores memórias em sua mente…

Essa centelha de ânimo para a vida, trazida pela fotografia, foi se ampliando conforme os dias passavam. Não mais aparecia a mulher de chita ou qualquer outra imagem obscura em seus cliques, mas já não importava: Mayara queria viver novas situações e registrá-las, para que pudesse revê-las por muitos anos, até quando sua memória já não mais desse conta de trazer todos os detalhes sozinha.

Motivou-se então a pesquisar mais sobre fotografia, luz e composição. Comprou uma câmera usada, algo simples, mas que lhe permitia mais controle do que a pequena câmera. Passou a andar com ela, experimentando ângulos, buscando histórias escondidas no dia a dia – sem jamais se desfazer de sua minicâmera. A pequena transformou-se em pingente, mas estava sempre lá, ouvindo o pulsar do coração no peito de Mayara.

Foi assim que a moça realizou um pensamento, inspirada pelo que lhe acontecera dias antes. Entendeu que além de registrar o passado, a fotografia era também uma forma de estar presente. Se antes tirava fotos sem pensar, apenas para armazenar imagens que nunca revisitava, agora fazia de cada clique um ato de atenção. Cada foto era um instante que não queria deixar passar despercebido, pois era um instante em que estava viva., construindo a própria história a cada fôlego de ar respirado.

Meses se passariam até o dia em que a jovem tomaria uma nova decisão: em um final de tarde tranquilo, decidiu voltar ao chamado Porto das Almas. Dessa vez, sem receio. Levou a câmera e caminhou até a beira da praia, onde as ondas quebravam suavemente. Respirou fundo e ergueu a câmera, ajustando o foco para o horizonte. O sol descia, tingindo o céu de tons alaranjados. Clicou. Depois virou-se, capturando as próprias pegadas na areia. Clicou outra vez.

(Foto: J. Carlos Katon)

E então, sem saber exatamente por quê, virou a câmera para o mesmo ponto onde, meses antes, vira a mulher de chita pela primeira vez.

Clicou.

O visor mostrou apenas a praia vazia. Nenhuma presença espectral. Nenhuma sombra estranha.

Mas Mayara sorriu. Sabia que, de certa forma, ela ainda estava ali. Ora, a mulher de chita não era um fantasma no sentido tradicional, ou um espírito preso entre tempos.

Ela era um lembrete. Um eco de todos os que viveram antes e que, de alguma forma, deixaram suas marcas na luz, na memória, na fotografia.

Mayara desligou a câmera, sentindo uma paz silenciosa crescer dentro dela. Depois de tanto tempo tentando entender aquele mistério, percebeu que não precisava de todas as respostas. Aliás, procurá-las só levaria a uma vida com menos cores. Guardou então a câmera e começou a caminhar de volta para casa, deixando pegadas que seriam apagadas pelo mar, mas jamais apagadas na fotografia, como tudo na vida.

FIM