AVISO IMPORTANTE
Esta é uma continuação. Caso ainda não tenha lido a primeira parte, comece POR AQUI.
Folhetim – Presente Cinza, passado em cores – Capítulo 4
A noite caía quando Mayara chegou ao local indicado pelos antigos relatos. O Porto das Almas não era um porto de verdade, apenas um pedaço esquecido da praia, onde o mar batia contra rochas desgastadas e a vegetação crescia selvagem. O nome, segundo diziam, vinha de pescadores que desapareceram em alto-mar e que, de alguma forma, “voltavam” ali, como sombras na maré.

(Fotografia: Marcos Rogério Meneghessi)
A região estava deserta. O vento soprava forte, trazendo um cheiro salgado que impregnava o ar. Mesmo sem acreditar totalmente no que estava acontecendo, Mayara sentia que aquele lugar guardava alguma coisa. Não sabia dizer o quê, mas a cada passo que dava, seu peito apertava mais.
Parou perto de uma pedra alta e pegou a camerazinha. Não havia um objetivo claro em sua mente, apenas o reflexo automático de quem vive numa época onde tudo é registrado na Galeria de Fotos do celular. Tirou então uma foto da paisagem: o céu já bem nublado, o mar escuro, as ondas quebrando na areia úmida. Decidiu conferir se havia algo de estranho na imagem.
E quase como numa confirmação óbvia, a imagem estava incompleta. Partes do cenário pareciam apagadas, como se o lugar não pudesse ser capturado por inteiro. Uma pedra, visível a olho nu, desaparecia na fotografia. Um pedaço da praia parecia ter sido recortado. Era como se o tempo ali não funcionasse direito, como se a câmera não conseguisse registrar completamente o que existia.
Um arrepio percorreu-lhe todo o corpo, e não era da brisa fria que surgia. Mayara respirou fundo e tirou outra foto, dessa vez mirando um trecho específico da areia. Quando olhou a tela, seu coração disparou: A mulher estava lá. No fundo da imagem, em pé, com o vestido de chita oscilando ao vento. O cesto vazio equilibrava-se sobre a cabeça, e seus olhos escuros pareciam fixos em Mayara, atravessando o tempo, atravessando a tela.
Mayara sentiu um nó na garganta. Olhou ao redor, buscando qualquer sinal real da mulher na praia, mas não havia nada. Apenas o mar, o vento e o silêncio pesado. Engolindo o medo, abriu novamente a galeria do celular. Tocou na foto para ampliá-la. O visor piscou. Por um instante, a imagem pareceu mudar. As cores tornaram-se mais vivas, e de repente, novas formas começaram a surgir na tela.
Eram fotografias. Fotos que não estavam na câmera antes. A essa altura, isso já não era surpresa alguma: havia mesmo algo sobrenatural acontecendo, mas Mayara não poderia esperar pelo que ela veria naquelas imagens.
As fotos eram da própria Mayara. Mas não eram selfies, nem fotos que ela lembrava ter tirado. Eram imagens espontâneas, capturadas de momentos que ela nem sequer valorizou na época. Ela se via na infância, correndo na areia com os pés descalços. Depois, mais velha, rindo com amigos em uma tarde qualquer. Uma imagem dela olhando para um céu cheio de nuvens, distraída, em algum dia que já esquecera. Adiante, ela, segurada nos braços de seu avô, quando era uma bebezinha. Seu avô… que ela tanto amara, e que partira fazia não muito tempo, deixando-a num luto confuso e sem preparo. E vieram mais, mais fotos… inúmeros pequenos fragmentos de vida, que existiram, mas que jamais voltaram à sua mente — até agora.
Tomada por uma mistura de afeto e medo, Mayara não pôde notar que lágrimas escorriam pelo seu rosto. Era como se estivesse despertando para as cores da vida novamente. Antes que ela pudesse agir de qualquer maneira, a jovem notou uma mudança brusca no ar. A maré estava subindo, e rápido. E então, como um sussurro carregado pela maresia, ela ouviu:
— Volte a viver.
A voz não era nítida, e definitivamente não pertencia a nenhuma conhecida. Mayara virou-se para as ondas, devagar.
A mulher de chita estava ali.
Não na tela, não na memória distorcida da camerazinha. Diante dela, entre as ondas rasas, olhando-a com um semblante sereno. Não havia ameaça, nem desespero. Apenas um silêncio profundo, como se esperasse algo. Uma sensação de sufoco tomou conta do peito de Mayara, que não sabia como reagir à aparição.
A mulher de chita ergueu o cesto, como se quisesse entregá-lo a Mayara, ou se esperasse que Mayara desse alguma coisa a ela. Entretanto, antes que a jovem pudesse se mover, uma onda mais forte veio e cobriu a areia acinzentada da praia. O vento sibilou como um assovio de alívio, e quando a água recuou, a mulher não estava mais lá.
O susto de não vê-la mais ali fez com que Mayara derrubasse a camerazinha das mãos, fazendo com que caísse na areia úmida. O visor piscou algumas vezes. Preocupada de que pudesse ter quebrado o pequeno equipamento, logo tirou a câmera dali e foi verificar se estava tudo bem. Ligou-a, e acessou a Galeria. Para sua surpresa, Mayara descobriu que as fotos mágicas que havia visto tinham desaparecido.
Só restava uma única foto: a mulher, de costas, caminhando para dentro do mar.
O que aquilo tudo significava? Quem era, de fato, aquela mulher? E o que representara aquele encontro? Mayara só iria compreender melhor as respostas para essas questões com o que aconteceria, por fim, no dia seguinte.
(clique aqui para ler o capítulo final!)
Organizador do CENI – Clube de Escrita Nós de Itanhaém, autor e editor